Grande entrevista com o Paulo Flores: “O que mais me motiva é ainda me sentir útil e com vontade de continuar a minha arte”
Paulo Flores, nascido no Cazenga em 1 de Julho de 1972, é um dos cantores mais populares de Angola. Após se mudar para Lisboa na infância, começou a sua carreira como cantor de kizomba, lançando o seu primeiro álbum em 1988. Também colaborou com o cantor brasileiro Péricles no espetáculo “Entre Povos”, celebrando as semelhanças culturais entre o semba e o samba. Desde 2007, atua como Embaixador da Boa Vontade da ONU em Angola, envolvido em ações de solidariedade social e desenvolvimento comunitário.
Acompanhe a entrevista exclusiva do cantor Paulo Flores à revista Chocolate Lifestyle:
Como vê a evolução da sua música ao longo destes 36 anos? Houve grandes mudanças no seu estilo?
Acho que houve muita procura, muitos ensinamentos e muitas experiências e inovações por géneros e musicalidades onde não me sentia muito confortável, mas penso que a essência nunca mudou, a procura pela minha verdade, a coragem de expô-la, de me expor muitas vezes, conseguir expressar-me e mostrar a minha voz e pensamento a mim próprio, a Angola e ao mundo. Acho que isso não mudou, só amadureceu.
Quais foram os maiores desafios da sua carreira e como os superou?
Essencialmente a minha timidez, a minha forma introvertida de ser e sentir, nunca quis ser famoso e por ser introvertido isso muitas vezes prejudicou a expansão e contato com o mundo de festas, encontros, até viagens por vezes não fazia por gostar mais de estar em estúdio a criar e a gravar do que propriamente a fazer contactos mesmo reconhecendo que ajudam sempre bastante. Superei a música e a dimensão da minha obra ajudou bastante. Com o tempo também me fui tornando mais comunicativo e extrovertido.
Pode partilhar alguns momentos marcantes da sua trajetória musical?
Felizmente foram muitos, o primeiro show no estádio dos Coqueiros nos meus 20 anos de carreira, onde vendemos mais de 27 mil bilhetes, com os convidados das empresas que apoiaram e os patos (risos ). Tivemos cerca de 30 mil pessoas nos Coqueiros, deve ser até hoje o concerto que vendeu mais bilhetes em Angola e já lá vão 16 anos, deve haver outros shows até com mais pessoas, mas em bilhetes vendidos mesmo acredito que seja até hoje o espetáculo que mais vendeu e foi muito marcante. Depois há muitos shows pelo mundo que foram marcos, alguns duetos e parcerias, tanto em disco como em shows ao vivo, como exemplo gostaria de destacar o dueto com Carlos Burity que convidei para cantar comigo o “ Poema do Semba “ que eu tinha acabado de compor e que se tornou um clássico do género e da música de Angola, com o grande mestre do Semba, Carlos Burity.
Como se mantém relevante na indústria musical com tantas mudanças ao longo dos anos?
Sendo eu mesmo, fiel a mim próprio e ao que acredito, procurando transmitir na minha música a generosidade e afeto da nossa gente, a diversidade da nossa cultura e do Semba em particular e a profundidade do pensamento e do que desejo que todos consigamos alcançar como povo e como nação. Mas essencialmente o que se mantém atual, não sou eu, mas sim a minha música, a minha obra, que como a obra de alguns dos grandes acaba por ser um espelho da alma angolana.
Quais foram as suas principais inspirações? Algum artista ou evento teve um impacto especial no seu trabalho?
Muitos, a começar por Bonga Kuenda e Teta Lando, passando por Waldemar Bastos, Carlos Burity e grande parte da música de Angola dos anos 60 e 70, em particular, Artur Nunes, David Zé, Vum Vum, Ngola Ritmos, Carlitos Vieira Dias só para mencionar alguns.
De que forma a sua vida pessoal influenciou a sua música? Alguma experiência pessoal moldou o seu estilo?
Todos os momentos familiares e pessoais moldam quem nós somos e naturalmente a nossa criação. Penso que o facto de ter recebido muito amor da minha mãe do meu pai, das minhas avós, junto com o amor que eles sempre tiveram por Angola e pela música de Angola influenciou decisivamente a minha forma de pensar, escrever e compor.
O que o motiva a continuar na música após tantos anos? O que ainda o entusiasma neste campo?
Acho que ainda me falta completar a minha obra com dois ou três discos, deixar algumas pistas sobre como tudo foi feito, deixar pistas para as novas gerações que muitas vezes me mandam mensagens sobre a importância da minha música e das minhas palavras nas suas vidas, é o que mais me motiva, o ainda me sentir útil e com vontade de continuar. A minha arte sempre foi pelos outros.
Como equilibra a vida profissional com a pessoal, especialmente depois de tantos anos de dedicação à música?
Nem sempre foi fácil, a vida de artista é muito exigente física e emocionalmente, para além de ser uma vida pública onde o escrutínio dos outros sobre a nossa pessoa é constante e muitas vezes implacável, depois com a minha personalidade mais introvertida nem sempre foi fácil, nem sempre é fácil, mas ao mesmo tempo tem muita coisa boa que acaba por equilibrar e compensar.
Quais são os seus planos após completar 36 anos de carreira? Está a trabalhar em novos projetos?
Primeiro pretendo começar a celebrar com esta Tourné pelo Sul de Angola que vai passar pelo Lubango a 31 de Agosto, Namibe a 7 de Setembro, Huambo a 14, Bié a 21, Benguela a 28 de Setembro todos os shows com preços mais acessíveis para o público que normalmente não tem possibilidades de assistir, e termina em Luanda dia 5 na marginal dia 12 o show final de gala. Depois até 2028 em que completo 40 anos de carreira, tenho vários projetos que envolvem um álbum de duetos com artistas que admiro, uma gravação de show ao vivo de clássicos da música de Angola com Orquestra, um Songbook com vários volumes da minha obra e uma biografia onde irei descrever o que vivi e o que senti durante todo este percurso.
Que conselhos daria a artistas iniciantes que aspiram a uma carreira longa e bem sucedida?
Que ouçam a sua voz interior, que nunca calem a sua verdade e que lutem por aquilo em
que acreditam. Que ouçam os outros e tenham sempre a cabeça aberta para aprender e usar esses ensinamentos sobre a arte e sobre a vida para criarem uma personalidade artística que é o que nos distingue e acaba por ajudar a criar um público e uma identidade.
Como vê a evolução da relação entre o artista e o público ao longo dos anos? Alguma interação com os fãs foi particularmente memorável?
Muitas memórias que me enchem o coração, aliás foi o público que sempre me incentivou e deu forças para enfrentar esta coisa da vida pública. São tantos momentos que não daria para enunciar todos aqui, mas vou contar um: uma vez em Benguela, fomos jantar ao bairro do Golfinho e ao sair do restaurante ia começar uma festa num armazém ali ao lado, as pessoas que iam para a festa quando me viram começaram a aproximar-se, eu acabei por subir para a parte de trás de uma carrinha daquelas abertas atrás e com o violão de um amigo que estava comigo fiquei mais de uma hora a cantar voz, violão e as mais de 300 pessoas que se juntaram à minha volta para cantarem comigo. Como eu costumo dizer, aos meus só gratidão.
Há alguma música ou álbum que teve uma conexão especial com o público? O que acha que contribuiu para isso?
Vários álbuns, desde logo os dois primeiros, “Kapuete a Kamundanda” e “Sassasa” que tanto em Angola como em Portugal, Moçambique e nos países africanos de expressão portuguesa, passavam bastante praticamente todas as músicas, depois álbuns como “Thunda Mu Njila”, “Inocenti” ou “Perto do fim” tiveram também muita aceitação e tocaram bastante as pessoas, talvez pela simplicidade com que abordava a nossa maneira de sentir e ser, pela frescura da linguagem, que assumia uma angolanidade descomplexada na forma e na estética e pela verdade e carinho com que fazia o nosso retrato.
Tem alguma história interessante ou divertida com os seus fãs ao longo da carreira?
Mais uma vez são muitos momentos, tantas histórias que por vezes fica difícil enumerar só uma ou duas, mas lembro-me uma vez no início dos anos dois mil, o Kiari era bebé e estávamos nas Palmeirinhas quando passou um helicóptero da força Aérea, que ao passar começa a dar a volta em nossa direção, eu tinha lançado o tema “Makalakato” há pouco tempo, o que causou um impacto muito grande na sociedade civil e nos corredores do poder, nesse contexto ao ver aquele helicóptero dar a volta e vir em nossa direção com toda aquela robustez, com o Kiari no colo ficamos meio assustados até, eis que o piloto do helicóptero da a volta na nossa direção, para mesmo à nossa frente e faz um gesto de continência em minha direção e segue a sua viagem. São essas demonstrações de carinho que sempre me alimentaram e que agradeço do fundo do meu coração a todos por tanto.
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