Não é surpreendente o facto de que a cerveja é das bebidas mais consumidas em todo o mundo pelos homens. Normalmente, a publicidade e os spots comerciais que a promovem são machistas, insinuando que esta é o símbolo da masculinidade em versão líquida,exclusiva para este nicho de mercado. Deste modo, fazendo uso das palavras e da história, proponhamo-nos a desvendar uma das grandes descobertas protagonizadas por mulheres: a cerveja.Sim, exatamente! A cerveja “geladinha” no copo só existe porque o sexo feminino assim o quis.
Segundo o estudo desenvolvido pela especialista em bebidas alcoólicasJane Peyton,as mulheres foram as responsáveis pelo desenvolvimento e aprimoramento da cerveja. Pelo menos até ao século XVI, foi consumida e produzida preponderantemente pelo sexo feminino e era vista como um alimento e não uma bebida. Uma vez que esta precisava de ser cozinhada e fervida e essas tarefas eram incumbidas ao género feminino, o seu sabor foi sendo construído pelas mulheres.
Autora de quatro livros sobre cerveja (Beer o’ Clock; School of Booze; Drink: A Tipplers Miscellany e Brilliant Britain), Peyton viajou até à antiga Mesopotâmia e à Suméria(os primeiros locais onde a bebida começou a ser fabricada) para descobrir mais sobre o assunto. Nesta região, o armazenamento dos cereais selvagens em potes de água era uma tarefa habitual.
As mulheres eram responsáveis por essa gestão e uma vez que eram as grandes conhecedoras das propriedades das plantas, começaram a misturar outras substâncias. Primeiro, o mel e depois, as frutas. Fabricar um elixir com o máximo de sabor era a tarefa que se impunha. Com o passar do tempo, depois dos cereais fermentarem, as mulheres extraíam o sumo e bebiam-no, acreditando que aquela bebida era uma fonte de alimento poderosa.
Na época, havia uma deusa, Ninkasi, que significava “a senhora que enche a boca” e que era considerada, pelos sumérios, a responsável pela criação da cerveja, passando a ser o símbolo divino que personificava a descoberta da bebida pelo sexo feminino. O que inicialmente era visto como um afazer doméstico, rapidamente passou a ser uma especialidade muito apreciada, espalhando-se por todo o mundo.
Segundo o estudo de Peyton, também foram as mulheres as principais responsáveis pela invenção e comercialização da cerveja na Idade Média. Na época em que os homens vikings exploravam o continente europeu, precisando de se ausentar por longos períodos de tempo, as mulheres ficavam em casa, a fabricar a bebida e a comercializá-la para garantirem parte do sustento familiar. Deste modo, começaram a gerir as tabernas da época, ficando popularmente conhecidas por Alewifes.
Inglaterra foi o principal palco que ajudou a popularizar a bebida, sendo bastante apreciada até aos dias de hoje. Aliás, algumas figuras da realeza, como foi o caso da rainha Elizabeth I, tinham o hábito de beber cerveja sempre que faziam uma refeição, incluindo ao pequeno-almoço.
No entanto, apesar do apreço da soberana pela bebida e apesar de esta ser vista como património cultural do sexo feminino, estima-se que a partir do século XVI o desenvolvimento e a fabricação da cerveja por mulheres começaram a ser condenados– principalmente pelas figuras do sexo masculino, que não queriam que estas ganhassem independência económica.
Os movimentos considerados heregespela Inquisição e pelo Estado começaram a ser ferozmente perseguidosno final da Idade Média e as figuras femininas foram as que mais sofreram com isso. O período conhecido popularmente como o da “Caça às Bruxas”serviu de pretextopara retirar a fabricação desta bebida às mulheres.
De acordo com a pesquisa de Jane Peyton, a cerveja era produzida num grande caldeirão. Quando a bebida começava a fermentar, o líquido borbulhavae para que este pudesse ser mexido, era necessário a ajuda de um pedaço grande de madeira. Além disso, à porta das tabernas que vendiam cervejas, colocava-se uma vassoura para assinalar o local, como se fosse uma placa de sinalização.
Uma vez que a cerveja é feita à base de malte (mistura de cereais), era normal que os ratos começassem a infestar os locais onde se confecionava a bebida, com o intuito de se alimentarem. A aquisição de um gato para solucionar a questão era fundamental. Vamos às contas: mulheres, caldeirão, líquido que borbulha, paus de madeira, vassouras e gatos;temos todos os elementos que ajudam a construir a imagem popular de uma bruxa. Resultado: muitas das mulheres que foram acusadas de bruxaria, acabando mortas em milhares de fogueiras, eram, na verdade, fabricantes de cerveja.
Toda essa onda de perseguições não tinha um verdadeiro propósito religioso. O que a Inquisição pretendia era garantir o controlo do poder e para isso, precisava de o retirar ao sexo feminino. Uma vez que a bebida já era muito popular e apreciada, na época, a Igreja não quis proibí-la. As mulheres foram o bode expiatório e a bebida passou a ser fabricada pelos homens, até meados do século XVIII. Depois disso, com a Revolução Industrial, vieram as novas tecnologias e os inéditos métodos de fabricação. As mulheres deixaram de conseguir trabalhar fora de casa e, progressivamente, foram sendo segregadas do contexto profissional. Todo o universo da produção de cerveja passou a ser dominado pelo sexo masculino.
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