Não desfazendo da nossa entrevistada que nos trouxe muita inspiração e conhecimento com as suas palavras, quem merece uma menção honrosa é indubitavelmente a sua filha, Otchali (ou ‘’Tchala’’, como carinhosamente a chama a mãe), que temperou e deu cor à entrevista com o seu riso; com os seus choros; com as suas ‘’tentativas de chamar a atenção’’ (segundo Carla). Todas estas graças representadas num corpinho mirim, ornado por lindos caracóis dourados e umas covinhas deliciosas nas bochechas.
‘’Eu não sei ser normal’’
Algo que repetiu constantemente ao longo de toda a entrevista. E foi exactamente por isso que o Crossfit surgiu na sua vida. ‘’Estava a fazer Muay Thai e vi umas bolas pretas com pegas e perguntei o que eram. Ele respondeu que eram kettlebells mas vi perfeitamente que não sabia explicar mais a respeito então fui pesquisar. Encontrei cursos de nível 1, 2 e 3, e como não sei ser normal, inscrevi-me logo nos três! Fui, fiz e morri e achei espectacular’’, diz entre gestos e risos.
Apesar de sempre ter gostado de desporto, amor esse herdado do seu pai, que sempre apreciou e praticou, Carla só começou verdadeiramente a ‘’treinar quando fui para a África do Sul, com 19 anos’’. Começou pela canoagem, que fazia com a sua colega de quarto e com amigos, regularmente. Além disso, paralelamente, ‘’tinha cassetes (ênfase grande em cassetes, entre risos) da Jane Fonda (…) por causa dela descobri uma paixão pelo exercício’’.
Mas na verdade, a formação académica da coach é em Direito Internacional Penal, que concluiu na Holanda. Trabalhou em courts penais por todos os continentes, porém, o exercício do Direito e o estar constantemente ‘’exposta ao lixo da humanidade: genocídios; violações; crimes de guerra (…)’’ começaram a pesar na sua mente e no seu coração, empurrando-a para uma depressão profunda que a levou a questionar-se acerca da sua própria identidade. ‘’Se pensas incessantemente na reforma tão nova, algo está errado’’.
Esse questionamento foi um processo difícil, pois Carla buscava algo diferente. Sabia o que não queria mas ‘’O que é que eu quero? Como faço para chegar lá?’’.
A resposta estaria na África do Sul, para onde regressou, o que também não foi fácil, devido ao sentimento de culpa e de responsabilidade inerentes às expectativas que os ‘’pais depositam nos filhos, aquela necessidade de recompensá-los por todos os sacrifícios feitos pelos filhos’’. Mas independentemente disso e com muita luta, foi na mesma, porque acima de tudo ‘’faço aquilo que me faz bem’’.
Na África do Sul ganhou o campeonato africano de Crossfit Games e a partir daí, começou a andar por todo o mundo, ajudando ginásios a treinar o seu staff; deu cursos; e todo este tempo o seu background como jurista ajudou imenso porque ‘’aprendi a falar em público, a comunicar e uso isso no meu trabalho agora’’. Trabalho esse que a faz sentir feliz e realizada, ‘’não há um dia em que acorde e não queira ir trabalhar’’
‘’Menina de Angola’’
Assim se intitula na sua conta do Instagram, mas por quê? Carla conta-nos (agora com Tchala nos braços, que reivindica ferozmente a atenção da mãe e principalmente a sua merecida amamentação) que ‘’estava na Holanda e estava com saudades, a trabalhar na minha identidade. Uma negra, que está na Europa, que faz um desporto maioritariamente de brancos, casada com um branco… uma negra numa realidade branca mas exposta a micro e macro agressões típicas de um país com problemas raciais’’.
Surge assim uma necessidade de se afirmar, porque ‘’eu sou Angolana, nasci cá, levei as minhas vacinas cá, sou do tempo do MUTU e do Caixão Vazio (…). Sou Angolana, uma africana na Europa, mas africana!’’
Não obstante saber de onde vem e é, não deixa de muitas vezes de se sentir desenquadrada na sua própria terra ‘’às vezes cá sinto-me como um cão de meias. Há certas coisas que me frustram, sou muito directa, não sei não ser assim e aqui não é nada assim, as pessoas não sabem ser directas e isso faz-me ser vista como arrogante (…) sou the odd word out (…) mas eu quero que a minha filha perceba que não tem de sorrir se não acha piada, não estou aqui para tornar a tua vida mais confortável se tu não tens problemas em invadir o meu espaço ou em ser desagradável’’, diz com toda a segurança e convicção, acompanhadas de um encolher de ombros.
Miúdos vs graúdos
Na sua box, Carla recebe miúdos e graúdos. Com as crianças é aplicado o BrandX Method, que é nada mais do que um método ‘’que ensina as crianças a mover-se’’, o que para a coach é bastante pertinente pois ‘’aqui as crianças não estão a mover-se muito, vão a todo o lado de carro e no desporto não há muitas opções. Assim, a brincar, aprendem as bases para uma boa movimentação’’.
Se existe uma diferença entre treinar crianças e adultos? Abismal! Para começar, ‘’as crianças têm menos egos, menos temas; mais disponibilidade para ouvir. Saio dessas aulas revigorada e revitalizada. O adulto já vem com ideias do que quer e deve fazer’’. Além disso, deu para perceber que Carla também tem um papel de ouvinte e quase psicóloga por vezes, porque os adultos têm ‘’muita bagagem’’.
‘’Nunca pensei ser mãe de ninguém’’
Ninguém diria, tais são o amor e a dedicação a Otchali, tal é a naturalidade dessa condição de mãe, que testemunhámos enquanto amamenta a filha ao mesmo tempo que esta lhe mete os pés na cara, ora com, ora sem o sapato que a petiz não sabe bem se quer ou não ter no pé.
Mesmo nunca tendo planeado ser mãe, ‘’aconteceu. E apesar de ser uma pessoa super acelerada (porque eu não sei ser normal), com ela não fui’’. Mas essa desaceleração não foi total, pois 6 semanas apenas após o parto, a coach voltou ao trabalho, ‘’levava a minha filha comigo, arranjei forma de a pôr a mamar enquanto trabalhava (…) chegava a casa destruída, mas tinha de o fazer’’.
A sua própria maternidade influenciou muito a sua especialização no treino pré e pós parto. ‘’Há muitos temas que as pessoas não abordam. Teres um filho e voltares a sentir-te tu. Com a pesquisa abri uma janela de temas que nunca ouvira: incontinência; diastase; depressão pós-parto; prolapso… etc (..) enfim, tabus! Abri uma caixa de pandora!’’
Isto deu-lhe imensas ideias, porque ‘’não queria ser só professora, queria um espaço em que se fala do pós-parto, em que posso dizer o que realmente sinto física e emocionalmente (…) nós somos mais do que bunda e pernas!’’, diz, acrescentando com uma mistura de admiração, orgulho e choque (como quem se lembra de uma experiência traumática): ‘’o parto é o evento mais atlético que já vi na vida! Já treinei muito mas nunca vi nada tão fisicamente desafiante e desgastante!!! Então se fazemos isso por que é que nos ensinam a não fazer nada durante a gravidez? (…) É todo um mundo e todo um processo’’, acrescenta, referindo-se ao processo ‘’de navegação e aceitação corporal’’.
‘’The future is black and female’’
É uma crença. Sendo ela ambos (negra e mulher) sofre a ‘’dupla carga de preconceito’’, acrescentando-lhe um terceiro factor: o seu aspecto. Carla tem dreadlocks (‘’porque não sei ser normal’’), gosta de andar descalça e por isso vê-se muitas vezes subestimada ou desvalorizada, sendo obrigada a fazer algo que detesta, mas ‘’por vezes tenho de falar do meu canudo, o que odeio, porque ainda existe a ideia de que só és alguém se estudares, mas depois se não demonstras isso não te respeitam’’, desabafa, frustrada.
Além disso, sente e sabe que intimida muitos homens pelo seu porte, força e estatuto, contrariando o que é tido como uma mulher comum. ‘’A mulher tem de ser pequena, comer pouco, ter pouca força, pintar as unhas … eu também pinto as unhas! (…) quando faço essas coisas gosto de dizer que I’m performing femininity’’, conta, com muito sarcasmo.
Mas isso não a impede de ter fé num futuro mais risonho: ‘’não quero não acreditar que não vai ser assim (…) temos de empoderar mais os negros, de apoiar mais, começar a gastar mais com produção negra, apoiar os negócios dos negros!’’, apela, acrescentando que é urgente acabar com expressões como ‘’cabelo ruim; bom ventre (quando se tem um filho mais claro); traços finos (..) e parar de alisar o cabelo para se ser mais profissional (o que é isso???)’’, aumentando o tom de voz em profunda revolta.
Da menina de Angola para a menina dos seus olhos
Como mãe que é, também Carla tem sonhos, medos e vontade de deixar algo à sua filha.
‘’Tenho medo que lhe aconteça algo neste mundo machista, ela é muito bonita. Tenho medo de não vê-la crescida’’, partilha com emoção.
Mas acima de tudo, quer que Otchali ‘’seja ela sem ter vergonha de quem é e que se aceite como tal sem lutar contra isso (…) que consiga dizer com licença eu estava a falar quando é interrompida (…) que não peça desculpas por existir, que siga o seu sexto sentido, que tome cuidado com relações tóxicas e que saiba que está certo escolher-se a si própria’’.
Apesar de ser uma mensagem para a sua filha, é pertinente para todas as mulheres, aliás, para toda a gente! Mas para o resto do mundo, especificamente, Carla tem outra mensagem: que se movam! Que dancem! Basicamente, que façam ‘’algo que vos afaste da realidade do dia-a-dia’’ e ao mesmo tempo vos faça bem à saúde.
E foi com essa mensagem que terminou uma entrevista em português, temperada a inglês, com uma cobertura de holandês, desta mulher que é uma verdadeira força da natureza e que por isso mesmo, por onde passa deixa a sua marca e arrasta tudo e todos consigo.
Strong is the new sexy!