A herança cultural angolana voltou a emocionar o público na última sexta-feira, na LAASP, com a apresentação da peça “Filho do Kamba Mbiji”, a aguardada continuidade de um dos maiores clássicos do teatro nacional, “O Feiticeiro e o Inteligente”. O espetáculo, apresentado pelo grupo Etu Lene, foi uma celebração da sabedoria ancestral, do misticismo e da força das tradições, numa performance intensa e poética que transcendeu o palco e tocou o coração da plateia.
Sob a direcção do encenador e dramaturgo Beto Cassua, o grupo brindou o público com uma encenação marcada pela expressividade corporal, pela musicalidade e por uma envolvente atmosfera emocional. As canções, como o nostálgico refrão de “Mana Minga”, transportaram os espetadores para um espaço onde o amor, a dor e a esperança se entrelaçaram num retrato profundo da condição humana.

Com cerca de 45 minutos de duração, “Filho do Kamba Mbiji” recupera elementos da primeira versão, exibida em 1999 no programa “Em Cena” da TPA, e realça a importância da oralidade, dos provérbios e das línguas nacionais, especialmente o kimbundu, como pilares da identidade cultural angolana. O espetáculo valoriza as raízes, os rituais e a música como pontes de preservação da memória coletiva e do sentimento de pertença.
Entre as temáticas abordadas, o dote assume papel central, sendo retratado como símbolo de prosperidade e união entre famílias. A peça evidencia esta prática como uma tradição que reforça os laços sociais e funciona como mecanismo de redistribuição de riqueza — um gesto que, para além do seu valor simbólico, garante a continuidade da comunidade e o equilíbrio familiar.
A narrativa gira em torno da família de Massunga, o “Filho do Kamba Mbiji”, que carrega um segredo sombrio herdado do passado. A trama desenrola-se em Banje-a-Ngola, na província de Malanje, e evoca o contexto histórico da Revolta dos Camponeses da Baixa de Cassanje, em 1961. Com interpretações marcantes de João Cacungo (Pedrito), Graciete de Jesus (Melita) e Bebiano de Carvalho (Massunga), a história revela o impacto das más práticas e da feitiçaria, numa reflexão sobre culpa, destino e redenção.

O cenário, cuidadosamente concebido, recriou com autenticidade o ambiente rural de uma aldeia tradicional, utilizando elementos visuais que transportaram o público para o universo simbólico da peça. A encenação destacou-se não só pela dimensão estética, mas também pela função pedagógica, ao alertar para as consequências dos comportamentos humanos e ao exaltar a importância da valorização das tradições.
O espectáculo prestou ainda uma comovente homenagem ao actor Avelino Veigas, falecido em 2023, célebre pela sua interpretação de Kamba Mbiji na peça original. O artista foi condecorado postumamente pelo Presidente da República com a Medalha Paz e Desenvolvimento, em reconhecimento do seu contributo para a cultura nacional.
“Filho do Kamba Mbiji” encerrou-se sob uma ovação calorosa, confirmando o vigor e a maturidade artística do teatro angolano contemporâneo. Mais do que uma simples representação, foi um acto de memória e de celebração da alma angolana, onde a tradição, a arte e a identidade se encontraram em perfeita harmonia — lembrando que o teatro, quando fiel às suas raízes, tem o poder de emocionar, ensinar e transformar sociedades.