Num país onde a arte da sapataria parece esquecida pelos grandes palcos e onde a moda ainda caminha sem estrutura sólida, José António Luís Pinto, conhecido como Zé Ramar, ergue-se como um símbolo de resistência, criatividade e missão social. A partir do seu pequeno espaço no Zango 2, em Luanda, cria verdadeiras obras com alma e propósito — sapatos e chinelas que não apenas vestem, mas também resgatam a dignidade de quem os calça.

“Comecei muito novo, muito novo mesmo”, diz-nos, numa entrevista exclusiva cedida à Revista Chocolate Lifestyle, onde partilha, com nostalgia e orgulho, o percurso que começou no bairro Maçanaral, em Benguela, aos 12 anos, por influência do seu tio.
Para Zé, comprar sapatos todos os meses não é vaidade. É necessidade. “As pessoas pensam ser capricho. Não. É necessidade. Compra este mês, mas no próximo já há outra ocasião, outra roupa, e vem a pergunta: isto vai combinar? Então faz todo sentido”. Esta forma sensível e prática de ver o mundo traduz o quotidiano de muitos angolanos, especialmente num país onde as estações pouco influenciam o estilo, mas a identidade continua a ser afirmada pela forma como nos vestimos — da cabeça aos pés.

Mais do que sapateiro, Zé Ramar é também um artesão do bem. Ao longo da sua carreira, transformou inúmeras vidas através de sapatos ortopédicos personalizados. Como no caso de uma senhora com o pé curvo, cujos familiares procuraram soluções na Europa sem sucesso. “Nunca havia feito nada parecido, mas solicitei que ela se sentasse e deixei que o Espírito Santo me guiasse. Fiz as botas. A senhora levantou-se… e já não coxeava.”
Dois meses depois, um envelope e um carro chegaram à sua porta como forma de agradecimento. Noutra ocasião, criou botas para uma jovem com prótese. Hoje, ela caminha com autonomia, confiança e sem dor. São momentos que, como ele diz, “valem mais do que dinheiro”.

Apesar da dimensão humana do seu trabalho, Zé ainda enfrenta a dura realidade de um sector abandonado. “Moda, em Angola, é apenas um paradoxo. Falamos de moda, mas não temos fábricas de calçado, nem indústria de couro. Moda é uma coisa séria. É indústria. Isso vê-se em Milão, São Paulo, África do Sul.” Ainda assim, colaborações como a que mantém com Leonel Miguel — figura respeitada na cultura nacional — têm servido de alento e inspiração. Zé acredita que Angola tem potencial, mas falta vontade política e institucional. “Já dei a cara. Só preciso de financiamento. Depois eu pago com trabalho. Posso criar uma indústria-escola e formar técnicos. Neste ramo, não há ninguém preparado.”
Num gesto de fé no seu talento e na missão que carrega, muitos dos trabalhos que realiza para pessoas com deficiência motora ou problemas de locomoção são oferecidos gratuitamente. “Se Deus me deu um dom, não é só para lucrar com ele. Também é para ajudar.” E é justamente essa generosidade que o torna tão respeitado na sua comunidade, recebendo pedidos de Cabinda a Malanje, muitas vezes impossibilitado de atender a todos por falta de recursos e equipamentos apropriados.
Com um olhar visionário e os pés bem assentes no chão, Zé Ramar revela o seu maior sonho: construir uma fábrica de calçado ligada a uma indústria de couro e a uma escola técnica. Uma estrutura que não só produza sapatos, mas também conhecimento, emprego e esperança. Hoje, graças ao apoio do administrador do Zango, já possui um espaço com documentação regularizada — mas ainda é pouco perante o tamanho da sua visão.
Ao encerrar a conversa, deixa uma frase que resume o espírito com que vive e trabalha:
“Tudo na vida tem resolução, quando a gente reflecte com humildade.”
E é com essa humildade, aliada a uma coragem silenciosa, que José António Luís Pinto — o nosso Zé Ramar — segue a calçar Angola, um passo de cada vez, provando que talento e propósito podem, sim, andar juntos.



Texto: Gracieth Issenguele
Fotografias: Paixão Lemba