Escrever sobre entrevistas a escritores é uma tarefa árdua por ser tão fácil, quase não temos de acrescentar palavras pois tudo vale a pena transcrever. Usar o discurso indirecto ou editar algo que foi dito de modo tão bonito, tão rico, é quase pecaminoso! Principalmente quando se trata de Kalaf Epalanga, um verdadeiro contador de estórias. O que se sente ao ler esta entrevista é exactamente o mesmo que se sente ao ler Estórias de amor para meninos de cor ; Também os brancos sabem dançar ; e O angolano que comprou Lisboa: um realismo que nos faz viajar, entrar nas situações descritas como se delas fizéssemos parte. ‘’(…) essa coisa maravilhosa a que chamamos de rap’’
Foi o rap o culpado de tudo, foi o que despertou seu ‘’eu’’ escritor e é o que o inspira ainda. ‘’Quando me mudei para Lisboa, me deparei com essa coisa maravilhosa a que chamamos de rap. O rap fez-me olhar para a minha condição: estrangeiro e negro. Senti que havia pessoas da minha geração a reflectir sobre questões sociais muito pertinentes e nesse processo, veio ao de cima a minha bagagem: tudo o que andei a fazer até então, os livros que andei a ler, as músicas que andei a ouvir (…)’’.

E apesar de ter tentado ser rapper, sem sucesso, pois não tinha (nem tem) ‘’talento nenhum para ser rapper’’, não se afastou da música e resolveu ‘’escrever letras para canções’’. ‘’Aí começou a minha busca. Tive a abertura de espírito para sair e procurar pessoas que dominavam linguagens musicais distintas. Me envolvi com o rock, aprendi a construir canções pop, misturei com músicos de jazz, aprendi com eles a liberdade e o sentido da aventura.’’
E nessa busca, encontra os livros: ‘’Sempre quis escreverlivros. A música foi um caminho para chegar a eles. Um caminho que continuo a adorar percorrer. E através das crónicas entrei no mundo dos livros que de certa medida, por admirar e estudar o Rap, sempre estive perto desse formato literário, mas foi preciso surgir o convite do Jornal o Público para me aventurar dentro do género e consequentemente, conhecer o editor Zeferino Coelho que me convidou a publicar na Caminho’’.
Música vs Literatura
Apesar de navegar por ambos os mundos, Kalaf é um escritor que também faz música e não um músico que também escreve. ‘’A música em mim se inicia com o verbo. Escrever surge da necessidade de catalogar, registar momentos e o espaço social que me envolve’’, partilha. Além disso, é mais reconhecido enquanto escritor do que enquanto músico, ‘’as pessoas abordam-me mais por causa do que escrevo. Hoje o meu ser músico não se manifesta naturalmente com a mesma intensidade com que se manifestava há 3 anos. Estou reformado das lides do palco. Longe vão os tempos em que aqueles, na sua maioria jovens do liceu, que entoam tímidos o refrão “wegue wegue” quando passava diante deles. Por vezes, fingia que não os ouvia, mas havia dias em que me voltava e acenava, divertindo-me quando tal reacção lhes causa surpresa e os leva a acotovelar-se dizendo Eu disse-te que era ele, o gajo dos Buraka. Agora, ouço comentários sobre os títulos dos meus livros.’’

Não obstante a música estar cada vez mais distante, ambas as artes ‘’nascem do mesmo lugar. A forma como vejo o mundo está presente no escrevo, independente do formato em que escolho partilhar com as pessoas. E no que toca a inspiração. São as pessoasquemaisme dão razões para puxar de um lápis e de uma folha de papel.’’ ‘’Sou do tipo de escritor que acredita que o próximo livro será sempre o melhor’’. Daí não ver nenhum dos seus livros como preferidos. Esta foi só uma das muitas coisas que partilhou connosco quando nos convidou a entrar num espaço mais seu, mais íntimo enquanto escritor, falando das suas fraquezas, arrependimentos, hábitos e identidade.
Comecemos pelo princípio: para haver inspiração, há que se sentir bem para tal, e sendo Epalanga ‘’um cidadão do mundo’’, ele gosta de ‘’estar, por razões óbvias, nas grandes capitais africanas do mundo. Londres, Paris, Lisboa, Nova Iorque, Luanda, Joanesburgo. Todas as cidades carregam um ritmo particular que as distingue. Para mim, é relativamente fácil nos sentir-me em casa onde existam negros mas ao mesmo tempoindependentemente da cidade que me encontre, sou sempre um Benguelense, filho de ovimbundos’’. Contudo, se pudesse diria ao jovem Kalaf que mantivesse essa alma de viajante, mas de outro modo: ‘’cria a disciplina de escrever um diário e viaja pelo continente africano. Tóquio e Nova Iorque podem esperar, primeiro visita Acra, Dakar, Kinshasa, Lagos…’’
Relativamente ao que escreve, claramente define como ‘’literatura africana’’ e se, como nós, também acha que os seus livros são como que conversas entre amigos, saiba que não está errado, pois Kalaf gosta ‘’da ideia de produzir literatura que ainda que abordado assuntos complexos, seja ao mesmo tempo acessível (…) tento traduzir a forma como nós os angolanos comunicamos. Existe uma leveza no uso que fazemos do língua que pode e deve ser celebrado a todo momento.
Tal como nos ensinou o mestre Uanhenga Xitu.’’ Para escrever pesquisa bastante, podendo este processo levar até um ano. Além disso, tenta escrever ‘’5 horas por dia’’, sendo que ‘’quando comecei a escrever, antes de ter filhos, tinha sempre como meta escrever duas páginas por dias. Hoje, a minha meta é mais realista’’. Tem dias bons e maus, mas ‘’o importante é continuar, como um operário fabril e frase a frase construir a obra’’.
O tão comentado ego artístico para ele ‘’é irrelevante quando se é bom contador de histórias. Se o ego de um escritor o fizer produzir livros como um Guerra e Paz de Leo Tolstoi ou um Beloved de Toni Morrison, então só temos que pedir, por amor da Santa Efigénia, que não mude nunca’’. E por falar em egos, o seu não o impede de ler as resenhas dos seus livros. Lê todas, ‘’as boas e as más, de forma democrática, sentado no meu santuário com uma caixa de fósforo na mão e a contemplar a minha existência.’’
As regras do jogo
É fácil de perceber que se Kalaf pudesse, limitar-se-ia a escrever, sem ter de ‘’explicar o que eu faço por razões comerciais’’, até porque essa explicação para ele é muito difícil, é-lhe complicado ‘’falar do processo criativo. Arte é para mim, matéria tão subjectiva, que colocar em palavras e explicar de forma lógica, perde todo o sentido. É me mais fácil deixar as obras falarem por si. Mas vivemos numa era em que a opinião do artista é mais importante do que o trabalho que ele produz. Sendo assim, há que aceitar as regras do jogo’’.
Por isso, e por ser algo tão íntimo e inerente à condição de escritor, talvez também lhe tenha sido difícil falar do tão temido writer’s block, ‘’a perda momentânea da capacidade de construir uma frase que seja digna de ser lida por outros, movida pela falta de criatividade ou inspiração (…) não só acredito no writer’s block, como comungo da ideia de Pablo Picasso que diz: A inspiração existe, mas tem de te encontrar a trabalhar’’.
Sobre o amanhã dos livros
Será que os avanços tecnológicos vão pôr fim à existência dos livros como os conhecemos? ‘’Iria certamente lamentar se os livros deixassem de existir mas estou convencido, talvez por ser africano, que não iremos perder nunca a capacidade e a necessidade de partilharmos estórias.’’
Sobre o amanhã do Kalaf
Desta vez seguiremos a máxima do ‘’se melhorar estraga’’ e deixaremos que sejam as próprias palavras do autor a concluir o artigo. ‘’Existem alturas em que estou mais perto dessa decisão [de voltar para Angola] e outras que nem tanto. Sei que o que andei a colher nesses anos todos a zanzar pelo mundo, servirá para alguém, não me vou impor mas tenho a certeza que de forma orgânica vou encontrar o caminho de volta nem que seja para me perder algures no planalto central.’’
Entrevista disponível na edição de Março.